Economia Falsificada
Como dezesseis bancos coordenaram uma fraude à economia global, até hoje impunes.
É possível fraudar a economia global e permanecer impune por mais de 16 anos? Pode parecer uma pergunta estranha, mas é uma acusação da qual dezesseis bancos envolvidos na maior fraude da história agora precisam se defender.
Neste artigo vamos falar de um cartel entre 16 bancos que teve o objetivo de manipular uma taxa indexadora chamada LIBOR, a qual chegou a ser chamada de "o número mais importante do mundo", devido à sua enorme influência na economia. Centenas de trilhões de dólares giravam em torno desta taxa. Os atos praticados por esse cartel permanecem nas sombras: nunca foram devidamente investigados.
Já é sabido que o LIBOR foi alvo de manipulações. Na década de 2010 foi desvendado que, nos bancos onde a taxa era determinada, funcionários de baixa hierarquia praticavam frequentes fraudes alterando seu valor para que ganhassem em investimentos atrelados ao LIBOR. Isto levou a taxa a finalmente ser descontinuada em 2022. Porém essas fraudes que foram identificadas e punidas não tocam a ponta do iceberg de manipulações muito maiores e mais impactantes neste indicador que dominou a economia global por décadas.
Já há evidências da existência de um cartel devastador que nunca viu a luz de investigações oficiais, ocorrido pelo menos entre os anos de 2005 e 2007. Mas os efeitos nefastos das ações desses bancos vão muito além destas datas.
A ausência de investigações adequadas representa uma bifurcação no caminho da história. Se adereçado, este crime tornaria-se o caso modelo da urgente necessidade do retorno de regulamentações financeiras que haviam sido recentemente retiradas do capitalismo global. E também, da necessidade em manter em cheque as lideranças corporativas que detêm poder significativo sobre políticas econômicas.
No lugar, o caminho tomado, de impunidade, abriu espaço para a normalização de uma série de abusos financeiros sobre os quais nós pagamos o preço. Desde então, crises tornaram-se recorrentes, e a cada uma que passa, diferenças sociais apenas aumentam. Pequenos bancos não sobrevivem e são absorvidos pelos grandes, em uma consolidação do poder financeiro que continua a se acelerar. O custo de vida permanece historicamente elevado, e não questionamos se as causas podem compartilhar a natureza da manipulação econômica que o cartel que discutiremos aqui representa.
Mas, antes de adentrar os impactos da fraude sentidos até os dias de hoje, será explicado o que é o LIBOR, além de serem apresentadas as evidências da fraude que nunca foram verdadeiramente analisadas pelas autoridades.
O que foi o LIBOR? Como ele era definido e onde era utilizado.
A determinação de seu valor era de responsabilidade de dezesseis bancos de diferentes países, conhecidos como “painelistas do LIBOR”, selecionados pela agência British Bankers' Association. Cada uma das instituições painelistas deveria responder diariamente à pergunta: “Para qual valor de juros acredito que minha instituição conseguiria emprestar fundos de outras instituições?”, e submeter seus valores para a agência Thomson Reuters.
Um aspecto vulnerável do processo era que confiava na auto-avaliação destes bancos. Não precisavam apresentar documentação de transações reais que demonstrassem a veracidade dos valores que submetiam.
Uma premissa para que a metodologia funcionasse de forma adequada era de que as submissões fossem secretas e individuais. Thomson Reuters então calculava a média das submissões individuais, desconsiderando os valores 25% mais altos e os 25% mais baixos. O valor final era publicado.
Mas então qual exatamente era o uso desta taxa? Em 2012, foi calculado que oitocentos trilhões de dólares em transações ao redor do mundo estavam indexadas ao LIBOR. Entre estas transações estavam operações financeiras de todos os tipos: juros de cartão de crédito, empréstimos corporativos, hipotecas, investimentos especulativos, entre várias outras. Esta prevalência e influência econômica deram-lhe o título de “número mais importante do mundo”.
Mas o reino da taxa LIBOR não surgiu do dia pra noite. Foi por meio de intenso lobby, durante anos, além de pressão política do setor financeiro, que foi cedido à taxa o espaço que, antes, era ocupado por outras taxas e processos regulamentares. Em seus anos de maior dominância, podemos observar que o LIBOR exercia influência sobre o processo de bancos centrais muito mais do que vice-versa.
Evidências da fraude: a história que nunca foi contada
Atualmente temos acesso a dados que revelam como o LIBOR foi determinado durante um período crítico de sua história. Especificamente, temos acesso às submissões individuais que cada banco contribuiu para o valor diário da taxa entre os anos de 2005 e 2008.
O que observamos é que em todo o período entre janeiro de 2005 e agosto de 2007, todos os 16 bancos submeteram valores quase perfeitamente idênticos entre si, que se moviam em sincronia de um dia para o outro. A média final, portanto, nada mais era do que o valor coordenado entre todos os “competidores”. Na época, submissões individuais eram mantidas sob sigilo, o que permitiu que esta flagrante coordenação passasse despercebida.
Sob estes padrões ocultos, a taxa LIBOR subiu de maneira sem precedentes entre 2005 e meados de 2006. E a partir de então, estagnou-se, mantendo-se quase perfeitamente imóvel pelos próximos meses.
O que aconteceu logo em seguida foi o início da crise financeira global de 2007-2008, em 9 de agosto de 2007. Os eventos que marcaram o início da crise, em resumo, foram o anúncio de três dramáticos eventos econômicos, que demonstraram que certos sistemas financeiros estavam cedendo sob problemas severos. Muitos imediatamente os interpretaram como maus presságios de falhas sistêmicas ainda por vir.
Na mesma data, abruptamente, da noite para o dia, as submissões individuais repentinamente começam a consistentemente variar entre si, deixando para trás os 32 meses consecutivos de sincronia. Isto só é visível com a observação de dados que na época não eram públicos.
Talvez outro aspecto marcante deste dia foi o aumento no escrutínio sobre parâmetros e marcadores econômicos, no que observadores apressaram-se em levantar questões e hipóteses para o que poderia ser a causa-raíz. No dia 10, a agência proprietária da taxa LIBOR, a British Bankers’ Association, publicou um comunicado de imprensa garantindo que os valores de sua taxa refletiam valores honestos, e complementou ainda que serviam como um barômetro preciso de como mercados globais estavam reagindo a condições de mercado. Porém hoje é difícil conciliar esta afirmação com o que observamos nos dados.
Como os bancos se beneficiavam do cartel?
Com centenas de trilhões de dólares atrelados ao LIBOR, o potencial oferecido por manipulações em seus valores era quase infinito. Um executivo em um dos bancos, dizem rumores internos, um dia comentou sobre “montanhas de dinheiro” que o controle do LIBOR lhe rendeu.
As oportunidades residiam não somente no controle da evolução da taxa, e na influência que tinha na economia em geral, mas também no que tinham informações privilegiadas sobre como os valores se moveriam de um dia para o outro. Como comentado acima, por um longo período a média final era na verdade um valor concordado, e portanto previamente conhecido por todos envolvidos.
Mas há um importante caso onde podemos delinear como este cartel pode ter se beneficiado da fraude: as hipotecas subprime, que tiveram papel central na grande crise de 2008.
No contexto da crise de 2008 nos Estados Unidos, hipotecas subprime eram em grande parte hipotecas de taxa ajustável, que começaram a crescer em popularidade a partir de 2004. A maioria era indexada ao LIBOR, e bancos que participavam do painel do LIBOR eram por sua vez bancos que originavam hipotecas.
Coincidente com o momento em que estas hipotecas começaram a se popularizar no país, o LIBOR começou a se elevar, o que elevava também os valores de reajuste dos juros das hipotecas de taxa ajustável. Outras taxas nos EUA começaram a se elevar nas semanas seguintes, mas sendo o LIBOR a mais dominante no mundo financeiro, a elevação nas outras taxas pode razoavelmente ser atribuída ao menos em parte ao movimento precedido pelo LIBOR.
Já em agosto de 2007, o número de inadimplências em hipotecas subprime começou a aumentar. Acontece que a este ponto, muitas das hipotecas já não eram mais devidas aos bancos que as originaram. Estas dívidas haviam sido empacotadas e vendidas para bancos de investimento, que procediam em securitizar e vendê-las como instrumentos de especulação para investidores.
Quando houve uma falha sistêmica devido em parte a estas inadimplências e especulações exageradas, o lucro já havia sido realizado pelos bancos do LIBOR. No mais, estas instituições foram as mesmas que absorveram os vários bancos de investimento que vieram a falir durante a crise, contribuindo para a consolidação financeira da qual estas instituições financeiras até hoje desfrutam.
Reverberações
Se realmente houve um cartel entre estas instituições, como as evidências apontam, ainda não temos como ter certeza de que outras formas o grupo se beneficiou ou distorceu a economia global.
Executivos nestes bancos continuaram suas carreiras sem interrupções, nunca sendo responsabilizados. Portanto, apesar dos padrões de colusão analisados aqui se limitarem aos anos antecedentes à crise de 2008, os meios e motivações para o crime permaneceram nas instituições.
A taxa LIBOR foi investigada por outros motivos entre 2012 e 2015. O foco investigativo na ocasião negligenciou o que vimos aqui, e recaiu a empregados nos bancos que realizavam suas próprias fraudes, comparativamente minúsculas. Não houve nenhuma condenação de alto-perfil a executivos ou corporações. De qualquer modo, como consequência, a taxa foi colocada em um longo processo de descontinuação, que foi concluído apenas recentemente. Mas não devemos limitar nosso foco à taxa em si.
Como diz o ex-regulador de bancos William K. Black:
“Se você quer criar a próxima crise e fazê-la vastamente pior, mantenha a posição de senioridade das pessoas que lideraram as fraudes bancárias. Com isso, elas têm toda uma pós-graduação em como reger uma fraude. E elas aprendem que não há consequências senão boas consequências.”
Por mais abstrato que o mundo financeiro possa parecer, impacta nossas vidas de maneiras concretas. E explicações para estes impactos podem nem sempre se encaixar em pura teoria econômica, e devem às vezes recorrer à criminologia. São impactos que sentimos na pele, que se refletem direta ou indiretamente nos preços que pagamos no dia-a-dia.
Abusos na taxa LIBOR representam falhas profundas em políticas financeiras e monetárias. Com o Brasil e outros países considerando a desdolarização como pauta a ser priorizada, talvez este caso possa se apresentar como exemplo importante da necessidade de reformas. Com a fraude LIBOR comemorando 16 anos de impunidade, o que mais deixamos passar?